Estavas tão claro que parecias chegado de outro mundo. Estava uma noite escura, aliás acho que isso é normal, as noites são escuras por natureza, mas aquela era particularmente escura. E apesar de tudo, da escuridão, consigo lembrar-me de cada cor, cada tom dessa noite.
Consigo lembrar-me de cada segundo dessa noite, ainda que me lembre de uma forma diferente do que realmente aconteceu. As memórias são assim. Sobre o mesmo facto duas pessoas criam histórias diferentes. Os laços que nos unem, desde sempre, fazem com que as nossas histórias não sejam duas mas uma, são esses laços que fazem com que, nas nossas histórias, os factos se apresentem secundários.
Aquilo que vivemos acabou por ser completamente diferente do que idealizamos desde miúdos, foi diferente de tudo o que poderíamos ter imaginado, mas foi como tinha de ser, foi como foi porque nós somos como somos e isso faz com que ame cada pedaço desta história, porque tu, sendo como és, tornaste mais claro tudo aquilo que eu, constantemente, tornava escuro.
Sempre adoraste a forma com eu era positiva para os outros e negativa para mim, sempre adoraste a forma com te arrastava para a fossa e, depois, tentava desesperadamente tirar-te de lá, tu sempre me adoraste. Eu sempre adorei a forma como me adoravas, eu adorar-te-ei para sempre. Tu adoravas a vida, eu adorava as pessoas. Era isso que nos unia, a diferença, o facto de nos completarmos. Acho que é isso que une qualquer casal mas no nosso caso isto não servia apenas para nos unir, mantinha-nos vivos. Completávamo-nos nas mais pequenas coisas, tu pedias café e eu gelado, tu comias carne e eu peixe, tu gostavas de praia e eu de campo, tu falavas francês e eu inglês, tu querias comédias e eu terror… Sim, nós éramos diferentes e era isso que nos unia.
Quando te arrastei para o único sítio onde me perdi sozinha não o fiz com consciência. Era apenas uma experiência, é sempre só uma experiência. E foi uma experiência, a pior da minha, das nossas vidas, foi a experiência que nos mostrou como as nossas diferenças eram demasiado grandes. Tu acreditavas demasiado em mim, eu não acreditava o suficiente em ti. Quando me disseste “Eu paro quando quiser”, não acreditei. Nunca fui capaz de te dizer “Deixa essa vida por mim”, sempre tive medo que não deixasses. Nunca acreditei que parasses quando quisesses, mas achei que se me visses a afundar nadarias o mais possível para me salvar. Foi por isso que comecei, porque se te obrigasse a salvares-me sabia que ficarias a salvo. E tinha razão, mas devia ter acreditado em ti, porque tu paraste quando quiseste, e quiseste quando me tiveste de salvar. Eu nunca consegui parar quando quis, quis no momento em que te vi anestesiado de tudo e de todos, quis parar nesse exacto momento, mas só se pode parar depois de começar, e eu só comecei nesse momento.
A tua família virou-me costas nesse dia, pensam que fui eu que te dei tudo o que consumiste, não sabem que eu não vivi nada disso até ao momento em que quase morreste à minha frente. A tua família acusa-me da única coisa que deveria louvar-me, foi a única vez em que te salvei sem ter culpa de nada. É certo que te apresentei quem não devia, mas nunca te dei o que não devia. A tua família não entende que se fiz tudo o que fiz depois desse dia, foi para que esse dia fosse um dia isolado e para que a angústia, que nos acompanhou durante as três horas em que te procurámos, não se transformasse numa companheira diária.
Foi quando me deste a mão e, pela primeira vez, ignoraste a minha vontade que eu entendi que tinha de parar, não que quisesse por mim, mas queria-lo por ti. Sabia que se não parasse tu entrarias de novo naquele mundo só para que regressássemos os dois, juntos.
Foi nesse momento que entendemos que não podíamos mais ficar juntos. Ambos queríamos ser felizes e eu só o seria quando tu o fosses, e tu só serias feliz longe de mim. Nunca conseguimos perceber porquê mas na realidade há coisa que não foram feitas para perceber, mas aceitar. Se precisássemos perceber tudo jamais nos teríamos amado, porque há coisas, em nós, completamente irracionais.
- Costumavas rir-te de mim e da forma com acreditava nas pessoas, da forma como perdoava e como dava oportunidades. Dizias que acreditava demasiado e que fazia o desnecessário. Eu dizia que tinhas sido tu a ensinar-me a ser tudo isso. Nunca percebeste. Um dia disseste-me que não havia vida sem amor, e eu disse-te que não havia vida sem pessoas. Lembras-te quando ganhámos um cabaz de Natal e decidimos entrega-lo ao primeiro sem abrigo que aparecesse? Encontramos um junto à entrada velha, naquele parque infantil que lá há. Quando lhe entregámos o cabaz, com um sorriso, ele atirou tudo aquilo ao chão e disse que se não era dinheiro então não queria.
- Lembro. Eu perguntei-te se mesmo depois disso continuavas a amar as pessoas e a acreditar nelas. Tu nunca chegaste a responder.
- Respondo agora, é precisamente por isso que amo as pessoas e acredito nelas. Todos nós temos de acreditar em algo. Eu acredito que as pessoas merecem não uma, nem duas oportunidades, mas todas aquelas que precisarem. É precisamente quando alguém recusa ser ajudado que mais precisa ser ajudado. Foi o que tu sempre fizeste comigo.
Foi assim que terminou aquela noite. Demos um abraço forte, olhámo-nos nos olhos e dissemos adeus, foi o único adeus que dissemos um ao outro.
Se me perguntares se disse tudo o que queria ter dito nessa noite, digo-te que não. Nunca te expliquei que acredito nas pessoas porque é a única forma de acreditar que só há vida com amor. Porque para amar é preciso acreditar.
Há já algum tempo k não me punha a divagar. Hoje deu-me para isso. Pancadas.
Vou ter saudades dos cafés como os de hoje, com vestidos azuis e etc.
*Kiss*
quinta-feira, agosto 24, 2006
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5 comentários:
Para amar é preciso acreditar e é preciso haver pessoas.
Quanto ao outro sair desse mundo para salvar a personagem que narra a história... era realmente bonito que assim fosse. Nisto que chamamos vida real.
O amor à droga seria, quase de certeza, superior.
Ou então falta-me acreditar nas pessoas e, tal como ele, só acredito no estúpido do amor. Que, e voltando ao inicio do ciclo vicioso, não existe sem pessoas.
Portanto, provavelmente, nem no amor acredito.
Também vou ter saudades.
O que significa que, afinal, devo acreditar minimamente no amor.
E nas pessoas.
Bonito! Não percebi muito bem, mas está bonito!!!
beijinhos! E obrigada pelo abraço virtual de há dias!;)
muito bonito!
estou a ver que não é só o teu avô que tem jeito para escrever..
está muito bonito mesmo.. parecia tão grande o post mas li num instante, porque se lê muito bem!
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