quinta-feira, agosto 24, 2006

pancas

Estavas tão claro que parecias chegado de outro mundo. Estava uma noite escura, aliás acho que isso é normal, as noites são escuras por natureza, mas aquela era particularmente escura. E apesar de tudo, da escuridão, consigo lembrar-me de cada cor, cada tom dessa noite.
Consigo lembrar-me de cada segundo dessa noite, ainda que me lembre de uma forma diferente do que realmente aconteceu. As memórias são assim. Sobre o mesmo facto duas pessoas criam histórias diferentes. Os laços que nos unem, desde sempre, fazem com que as nossas histórias não sejam duas mas uma, são esses laços que fazem com que, nas nossas histórias, os factos se apresentem secundários.
Aquilo que vivemos acabou por ser completamente diferente do que idealizamos desde miúdos, foi diferente de tudo o que poderíamos ter imaginado, mas foi como tinha de ser, foi como foi porque nós somos como somos e isso faz com que ame cada pedaço desta história, porque tu, sendo como és, tornaste mais claro tudo aquilo que eu, constantemente, tornava escuro.
Sempre adoraste a forma com eu era positiva para os outros e negativa para mim, sempre adoraste a forma com te arrastava para a fossa e, depois, tentava desesperadamente tirar-te de lá, tu sempre me adoraste. Eu sempre adorei a forma como me adoravas, eu adorar-te-ei para sempre. Tu adoravas a vida, eu adorava as pessoas. Era isso que nos unia, a diferença, o facto de nos completarmos. Acho que é isso que une qualquer casal mas no nosso caso isto não servia apenas para nos unir, mantinha-nos vivos. Completávamo-nos nas mais pequenas coisas, tu pedias café e eu gelado, tu comias carne e eu peixe, tu gostavas de praia e eu de campo, tu falavas francês e eu inglês, tu querias comédias e eu terror… Sim, nós éramos diferentes e era isso que nos unia.

Quando te arrastei para o único sítio onde me perdi sozinha não o fiz com consciência. Era apenas uma experiência, é sempre só uma experiência. E foi uma experiência, a pior da minha, das nossas vidas, foi a experiência que nos mostrou como as nossas diferenças eram demasiado grandes. Tu acreditavas demasiado em mim, eu não acreditava o suficiente em ti. Quando me disseste “Eu paro quando quiser”, não acreditei. Nunca fui capaz de te dizer “Deixa essa vida por mim”, sempre tive medo que não deixasses. Nunca acreditei que parasses quando quisesses, mas achei que se me visses a afundar nadarias o mais possível para me salvar. Foi por isso que comecei, porque se te obrigasse a salvares-me sabia que ficarias a salvo. E tinha razão, mas devia ter acreditado em ti, porque tu paraste quando quiseste, e quiseste quando me tiveste de salvar. Eu nunca consegui parar quando quis, quis no momento em que te vi anestesiado de tudo e de todos, quis parar nesse exacto momento, mas só se pode parar depois de começar, e eu só comecei nesse momento.
A tua família virou-me costas nesse dia, pensam que fui eu que te dei tudo o que consumiste, não sabem que eu não vivi nada disso até ao momento em que quase morreste à minha frente. A tua família acusa-me da única coisa que deveria louvar-me, foi a única vez em que te salvei sem ter culpa de nada. É certo que te apresentei quem não devia, mas nunca te dei o que não devia. A tua família não entende que se fiz tudo o que fiz depois desse dia, foi para que esse dia fosse um dia isolado e para que a angústia, que nos acompanhou durante as três horas em que te procurámos, não se transformasse numa companheira diária.
Foi quando me deste a mão e, pela primeira vez, ignoraste a minha vontade que eu entendi que tinha de parar, não que quisesse por mim, mas queria-lo por ti. Sabia que se não parasse tu entrarias de novo naquele mundo só para que regressássemos os dois, juntos.

Foi nesse momento que entendemos que não podíamos mais ficar juntos. Ambos queríamos ser felizes e eu só o seria quando tu o fosses, e tu só serias feliz longe de mim. Nunca conseguimos perceber porquê mas na realidade há coisa que não foram feitas para perceber, mas aceitar. Se precisássemos perceber tudo jamais nos teríamos amado, porque há coisas, em nós, completamente irracionais.

- Costumavas rir-te de mim e da forma com acreditava nas pessoas, da forma como perdoava e como dava oportunidades. Dizias que acreditava demasiado e que fazia o desnecessário. Eu dizia que tinhas sido tu a ensinar-me a ser tudo isso. Nunca percebeste. Um dia disseste-me que não havia vida sem amor, e eu disse-te que não havia vida sem pessoas. Lembras-te quando ganhámos um cabaz de Natal e decidimos entrega-lo ao primeiro sem abrigo que aparecesse? Encontramos um junto à entrada velha, naquele parque infantil que lá há. Quando lhe entregámos o cabaz, com um sorriso, ele atirou tudo aquilo ao chão e disse que se não era dinheiro então não queria.
- Lembro. Eu perguntei-te se mesmo depois disso continuavas a amar as pessoas e a acreditar nelas. Tu nunca chegaste a responder.
- Respondo agora, é precisamente por isso que amo as pessoas e acredito nelas. Todos nós temos de acreditar em algo. Eu acredito que as pessoas merecem não uma, nem duas oportunidades, mas todas aquelas que precisarem. É precisamente quando alguém recusa ser ajudado que mais precisa ser ajudado. Foi o que tu sempre fizeste comigo.

Foi assim que terminou aquela noite. Demos um abraço forte, olhámo-nos nos olhos e dissemos adeus, foi o único adeus que dissemos um ao outro.
Se me perguntares se disse tudo o que queria ter dito nessa noite, digo-te que não. Nunca te expliquei que acredito nas pessoas porque é a única forma de acreditar que só há vida com amor. Porque para amar é preciso acreditar.

Há já algum tempo k não me punha a divagar. Hoje deu-me para isso. Pancadas.

Vou ter saudades dos cafés como os de hoje, com vestidos azuis e etc.

*Kiss*

sexta-feira, agosto 18, 2006

Memórias Esquecidas I

[...]
Quando Mike Elegante se vai embora, o Embraiagem olha para mim.
-Porque me defendeste?
Encolho os ombros.
- Porque tu próprio não o fizeste.
[...]
Antes que eu consiga responder, o Embraiagem aparece à porta da nossa cela. Tem na mão um frasco de champô e treme dos pés à cabeça.
-O que se passa? - pergunto.
Ele parece que vai vomitar.
- Não consigo - diz subitamente, e de repente vejo o Mike Elefante atrás dele.
Mike tira o frasco das mãos do Embraiagem e aperta, salpicando-me todo de fezes humanas.
- Queres tanto ser negro que é melhor esfregares isto na pele.
Estão no meu cabelo, na minha boca, nos meus olhos. Sufoco, tentando respirar em volta do cheiro horrível, limpando-me e depois estendendo as mãos, cobertas de merda. Conciso salta para cima de Mike Elefante enquanto os guardas prisionais se apressam a entrar na cela. Tiram Conciso de cima do Mike e atiram-no para cima da imundíce que está no chão.
- Isso foi estúpido, Conciso - grita o guarda.- Mais uma e és reclassificado para a restrição disciplinar.
Uma outra guarda prisional agarra-me no braço e leva-me para fora da cela.
- Precisa de ser descontaminado - diz ela. - Vou trazer-lhe roupas.
Volto-me e vejo, por cima do ombro, o primeiro guarda pôr o joelho nas costas do Conciso para o algemar.
Eles acham que foi o Conciso que me fez isto, apercebo-me - um negro a tentar fazer o seu companheiro de cela de tal forma infeliz que peça para ser transferido. Eles presumem que Mike Elefante da mesma raça que eu, estivesse ali para me ajudar.
- Esperem - digo eu, quando o guarda me leva. - Foi o Mike que fez isto! (...) Perguntem ao Embraiagem.
[...]
Fecho os olhos e tento ouvir os sons da prisão. Demoro algum tempo para perceber o que falta: pela primeira vez desde que está aqui, o Embraiagem não está a chorar antes de adormecer.
(...)
Transportam o corpo do Embraiagem numa maca passando pela nossa cela.
-Qual é o nome del? - pergunto aos técnicos de emergência médica, mas eles não respondem. - Qual era o seu verdadeiro nome?-grito.-Ninguém sabe o seu verdadeiro nome?
- Yo - diz Conciso. - Calma, mano.
Mas eu não quero acalmar-me. Não suporto pensar que, em circunstancias diferentes, poderia ter sido eu. Será que o Destino é recebermos o que merecemos ou merecermos o que recebemos?
Conciso olha para mim intensamente.
- Ele está melhor assimm acredita.
- A culpa é minha - volto-me para el, de lágrimas nos olhos. - Disse aos guardas prisionais para falarem com ele.
-Se não fosses tu teria sido outra pessoa. Noutra altura.
Abano a cabeça.
-Que idade tinha ele? dezassete, dezoito?
-Não sei.
- Porquê? Porque é que ninquém lhe perguntou de onde era, ou o que queria ser quando crescesse, ou...
-Porque todos sabemos como acaba a história. Com uma meia enfiada na garganta, ou uma bala nas tripas, ou uma faca nas costas - Conciso fica a olhar para mim. - Algumas histórias são aquelas que ninguém quer ouvir.
Sento-me no beliche, porque sei que é verdade.
- Queres saber o que aconteceu ao Embraiagem? - diz Conciso num tom amargo. - Era uma vez um bebé que nasceu em Nova Iorque. Ele não conhecia o pai, que estava trancado na cadeia. A mãe era uma pega drogada que se mudou com ele e as duas irmãs para Phoenix quando ele tinha doze anos, e que dois meses depois morreu de overdose. As irmãs foram viver para casa dos pais dos namorados, e ele foi para as ruas. Os Crips de South Park tornaram-se a sua familia. Alimentaram-no, vestiram-no, e um dia quando ele tinha dezasseis anos deixaram-nos participar na acção, quando convenceram uma rapariga a divertir-se um bocado, e todos a violaram à vez. Mais tarde descobriu-se que ela tinha treze anos e era atrasada.
- Foi assim que o Embraiagem veio aqui parar?
- Não. - responde Conciso. - Foi assim que eu vim aqui parar. A história do Embraiagem é a mesma coisa, os nomes é que são diferentes. Todos aqui têm uma história dessas.
[...]

[in Memórias Esquecidas, Jodi Picoult]

*KISS*