terça-feira, maio 16, 2006

23

19.55h. Ou qualquer coisa parecida. Numa média de 50km/h o autocarro contorna aquelas curvas do Monsanto onde se vê de tudo (ou de nada).
Um pouco vazio nem parece o mesmo 23 que se apanha em hora de ponta. Mas é. Conheço-lhe os bancos, as janelas sempre fechadas (trocadas por ar condicionado), os papeis informativos e a última campanha da Carris "Prefere pagar 65 cent. ou 65 €, com bilhete é mais barato", dizem. Conheço algumas caras e reconheço o trajecto. Aquela estradas, aquele caminho, aquelas curvas, aquelas paragens...aquelas pessoas que se deslocam lá fora e atravessam a estrada a correr, ou se aproximam de carros quando lhes é pedida um informação.
É extraordinario o que passamos a conhecer se andarmos diariamente de transportes publicos. Hoje divirto-me a imaginar a vida dos "meus colegas". Hoje consigo advinhar (quando não erro...) que autocarro vai apanhar aquela pessoa que olha impacientemente para o relógio.
À minha frente vai uma rapariga a falar ao telemovel. Fala tão alto que mesmo com headphones consigo ouvir a conversa toda. Um grande dilema amoroso. Se me tivesse perguntado a mim, ter-lhe-ia dito que tinha cometido um erro. Não perguntou e ainda bem. Não sei a história toda.
Do outro lado da rua, na paragem contrária, uma senhora faz sinal ao motorista. Atravessa a rua a correr e entra com uma criança. Deve ter uns 9 ou 10 anos e está de t-shirt. A mãe tira da carteira aquele cartão que lhe permite não pagar os 65€ (mas de qualquer maneira bem mais do que os 65cent.), passa-lo pela maquina, abraça o filho e senta-se com ele no mesmo banco, bem junto da porta. Está preocupada. Passa-lhe as mãos pela cara vezes sem conta, "estás bem?", passa-lhe outra vez as mãos pela cara. Ele não responde. Está acordado, mas fraco.
O autocarro pára de repente. Não há Stop, nem sinal vermelho, nem paragem, não há nada. Ou se calhar há algo muito mais importante. A porta está aberta e lá fora, agarrado a um poste, está o miudo aflito, agaraado à barriga a vomitar o mais que pode, e a mãe, aflita e preocupada.
"Vá-se embora, nós apanhamos o proximo, obrigada."
"Veja lá o miudo...estás melhor?"
Não está. Cansado e sem forças senta-se no chão,continua agarrado à barriga.
"Pode ir ele não está bem, nós depois apanhamos outro."
"Veja lá o miudo..."
Lentamente e com a ajuda da mãe levanta-se e dirige-se para o autocarro. Está mais fraco do que nunca. A mãe agradece o tempo que o motorista esperou e diz à criança para não se sentar. A criança tenta obedecer-lhe mas não consegue, agarrada ao corrimão vai deslisando, caindo. Não tem força para ficar de pé.
Aparentemente bebeu leite estragado na escola. Mandaram-no para casa e avisaram a mãe.
De repente o autocarro já não vai a 50km/h....o acelarador deve ir bem mais fundo. As árvores passam por nós a correr, e os outros carros perdem a corrida. Está vermelho. Abrandamos e quase paramos. Está verde. Corremos o mais possivel. Chegámos. O Hospital está a uns metros, metros que mãe e filho terão de fazer a pé.
A mãe agradece uma vez mais.
E eu também.
[Pk sabe tão bem ver que, de vez em quando, ainda somos seres humanos!]

Bem estou a chegar à fase de isolamento...=
*kisses*

4 comentários:

Jay Dee disse...

Já a conhecia de ouvido, mas escrita ficou (ainda mais) bonita.

Ana Garcia disse...

Que engraçado.... Pode-se dizer que foi uma viagem engraçada no belo do 23....=) O 'binte e nobe' também dava histórias engraçadas, caricatas, até!! Desde os cheiros desagradáveis a sovaco e a pés-que-não-são-lavados até quase histórias de pancada.... há de tudo....
Gostei de ler! O Paulinho Moura havia de gostar muito da forma como descreves os espaços...;)

beijinhos

Maria disse...

Hmm... estás tu e eu. Bem, mas eu já sou isolada por natureza.

Quanto a isto que acabei de ler...
vai ser o que me vai passar pela manhã e pela tarde na cabeça. Não que já não o fizessem, mas agora vou lembrar-me de ti. : )

***

Maria disse...

Já tenho, sim! : D Estão lindos, lindos... mas pronto, eu sou suspeita! Depois falo contigo. : D