domingo, maio 07, 2006

(re)



Fecho os olhos e tudo o que vejo é passado. Aquela noite. Aqueles momentos. Aqueles minutos. De olhos fechados quase abandono o meu corpo e o espaço onde estou regressando a uma noite escura, fria e molhada, já vivida. É como se me transportasse para lá e (re)vivesse tudo aquilo novamente. Consigo sentir o cheiro a marijuana (e a outras coisas que não identidicando imagino), a roupa encharcada, ver umas cores difusas e tremer devido ao vento que me sopra aos ouvidos e me impede de encontrar o que preciso, uma voz familiar. E de repente, de olhos fechados, faço tudo de novo. Agora já não é "passado", agora estou a viver aquilo pela primeira vez, é presente e, por muito que se pareça com o passado, o final será diferente, será feliz.

São nove e trinta e nove. Detesto estes relógios digitais, parece que estamos a morrer lentamente. Horas, minutos e segundos...parece que a cada segundo nos dizem "estás atrasada". Não é que isso seja importante agora. Estou atrasada, sim, dois anos, sete meses e vinte e seis dias. Sempre memorizei demasiado bem datas...
Eu e o tempo temos uma ralação estranha. Quando falo em horas, minutos e segundos assusto-me tremendamente, detesto contabiliza-los, detesto relógios e tudo o que me prove que uns simples momentos estão prestes transformar-se num dia. Contudo, estou constantemente a contabilizar dias, meses, anos, não consigo evitar. Tenho calendários espalhados por toda a parte, um na minha mesinha de cabeceira, um na porta do meu quarto, um (ou mais) na carteira, e três na minha secretária (um onde risco os dias que passaram, outro onde assinalo eventos importantes e um que mantenho impecavel para que nada estrague o momento em que o recebi...). Relógios não tenho, ou melhor só este (ainda por cima digital) e só o uso porque hoje em dia toda a gente marca horas e, também, porque o recebi da forma mais estranha possível, lembras-te? Só não percebo porque me tiveste de dar um digital, podias ter-me dado um com ponteiros, e sem números. Adiante. O relógio diz-me que estou atrasada nove minutos e quarenta e três segundos. Engana-se. Estou muito mais atrasada que isso.

Devia ter-te procurado assim que me disseste "...eu só preciso provar que sou capaz, só isso. Daqui a uns meses, quando tiver tudo arranjado telefono-te e falamos sobre isso." . Nunca telefonaste. Sempre detestei essa tua mania de fugires quando algo não te agradava. Geralmente fugias sempre que te ligava à procura do meu irmão, primeiro ajudavas-me a encontra-lo e depois saías dizendo "já volto" ou "amanhã telefono-te". Nunca voltavas nem telefonavas. Mas só no dia em que vieste ter comigo ao hospital é que percebi porque o fazias. Tinhas medo de que a conversa nos conduzisse até ti. O teu problema não era falar sobre o meu irmão, e o que o rodeava e afastava. O teu problema era eu poder perceber que tu fazias parte disso. O teu problema era eu tentar puxar-te para cá como tentava, desesperadamente, fazer com o meu irmão. Nunca quiseste ser ajudado. Se calhar porque nunca ninguem foi capaz de o fazer, nem mesmo eu.

A mão treme-me. Não consigo entender como demorei tanto tempo para te procurar. Pior, não consigo entender porque só o faço agora que tenho vontade de te matar, de te matar e, ao mesmo tempo, de te dar a mão e levar-te comigo, com esta mão. Esta mão que assinou há quatro horas o atestado de óbito do meu irmão, esta que treme sem parar.

Corro por estas ruas que desconheço, acho que já passei por esta casa cinco vezes, ou então isto é tudo igual. Estou perdida. As pessoas olham-me e aproximam-se, notam que não sou daqui, deste mundo. Não tenho medo. Estou desesperada, perdida e rodeada de pessoas.
Grito por ti mas não apareces...claro que não. Será suposto conseguirmos encontrar alguma coisa nestas ruas de buracos e casas a cair? Pergunto, a estes fantasmas que aqui andam, por ti. Sim fantasmas, eles não olham uns para os outros, deixam-se ficar quietos como que num mundo paralelo..não são pessoas como eu neste momento, estão anestesiados...conheço tão bem estes efeitos.
A primeira vez que me chamaram por uma overdose bloqueei. Conhecia a rapariga, era a Sara, uma antiga namorada do meu irmão (agora são todas antigas...), era aquela rapariga que todas as mães querem para noras, boas notas, bem comportada, bem educada, responsavel, com muitos amigos, e com muitas outras coisas que nenhuma dessas mães sabia. A partir daí aprendi a apagar os rostos da minha memória para poder agir a tempo e com frieza, é mais fácil assim.
Agora estou sentada no chão, chove cada vez mais. Queria ouvir a tua voz...sei que seria a única coisa através da qual te reconheceria, mas o vento não me deixa. Levanto-me lentamente agora que as minhas lágrimas se misturaram com as gotas da chuva. Procuro uma saída. Já não te quero matar, mas não quero correr o risco de te encontrar deitado no chão e assinar outra certidão.

Ouço a tua voz a gritar por mim e depois um tiro...quando me viro para trás estou novamente atrasada.

Levanto-me agitada. Abro os olhos. Estou a chorar com todas as minhas forças. Abro a janela do quarto, uma nuvem tapa o sol...mas ele está lá. E eu, eu só preciso saber como chegar até lá. Foi a morte mais doce, mais feliz, que me podias ter dado. Obrigada.

Adorei o fim de semana...foi lindo!

[foto...aula de espanhol...algés]

3 comentários:

Jay Dee disse...

Este post assusta-me.
Espero que não passe de um daqueles posts que não passam disso..posts.
Essa aula de espanhol é que foi muito à frente.
Desculpa a noite. Eu devia ter ficado quieta.

Ana Garcia disse...

Textinho bonito, forte, intenso, e tudo, e tudo e tudo!! É de quem??:P

Aulitas de Espanhol com a Dalilazita, né?:P

beijinhos

Anónimo disse...

No comments, ainda estou arrepiada e estranhamente feliz. Ou tu páras ou n sei...Bjoka